domingo, outubro 03, 2010

Crime e Castigo


o "Crime e Castigo" é considerado o primeiro grande romance que Fyodor Mikhaylovich Dostoyevsky escreveu ao atingir o seu período de maior maturidade literária.
Curiosamente a ideia inicial para este livro seria a de explorar o consumo abusivo de álcool e as suas consequências, cujo título seria "The Drunkards". No entanto um homem veio mudar isso tudo, seu nome, Pierre François Lacenaire. Inspirado pelos crimes de Lacenaire, Dostoyevsky criou o crime de Raskolonikov (personagem principal da trama) e a partir daqui a história central lidaria com outras questões morais, no entanto o tema do álcool não foi esquecido e continuou a ser abordado, agora através de personagens secundárias, o que acontece com a família Marmeládov.

Esta não seria a única mudança radical a ocorrer durante a escrita deste romance. A versão inicial do livro foi escrita na 1º pessoa através da perspectiva de Raskolonikov. Com o tempo a história crescia cada vez mais na mente de Dostoyevsky, que apesar de já ter escrito grande parte da obra, decidiu alterá-la completamente ao reescreve-la do início mas agora na 3º pessoa, tendo até anunciado que teria queimado a versão anterior, facto que foi desmentido posteriormente por Joseph Frank.
A forma como o autor acabaria por escrever o livro, ligando o narrador à consciência das diferentes personagens, foi altamente revolucionária e original na época tendo até gerado alguma controvérsia. Hoje em dia é indiscutível a sua qualidade e importância.

A história começou por ser editada no jornal "The Russian Messenger" em 1866. A relação entre o autor e os editores correu bem salvo uma excepção e essa excepção prendeu-se com uma personagem em particular, Sónia. Não se sabe especificamente em relação ao quê, mas aparentemente Dostoyevsky teve de alterar algumas partes sobre ela, algo que não foi, comrpeensivelmente, fácil para o autor.

O enredo centra-se na personagem de Rodion Romanovich Raskolnikov, um ex-estudante de direito a viver em São Petersburgo. A personagem é-nos apresentada como não estando nas melhores condições, as suas roupas são velhas e rotas, o seu quarto uma sala minúscula e não tem emprego. Desde o início do livro há uma ideia que apoquenta constantemente a sua mente, que a mantém em constante turbulência e agitação, uma ideia que a pouco e pouco tem vindo a ganhar mais relevância, a ideia de assassinar Alyona Ivanovna uma velha viúva a quem várias pessoas recorrem em tempos desesperados para penhorar os seus bens.
A início Raskolnikov nunca explica a razão por qual está a considerar efectuar este crime, revela-nos que a senhora é uma aproveitadora e que se ganharia muito mais com a sua morte uma vez que com o seu dinheiro ele poderia fazer mil acções que compensariam tal acto. Mas há muito mais por trás desta ideia que só nos será revelado mais à frente.

Enquanto considera se avança com este plano conhece Semyon Marmeladov um bêbado que lhe conta toda a sua vida e como a sua família sofre com o seu alcoolismo. Incapaz de segurar um trabalho a sua filha mais velha, Sónia, foi obrigada a prostituir-se para colocar comida na mesa do pai e da sua segunda mulher (que sofre de tísica) e mais três crianças. Ráskolnikov fica impressionado com este relato, em como o ser humano é um verdadeiro patife que se habitua a tudo, ou então, pelo contrário que não é um patife, que afinal "tudo o resto é superstição, falsos medos, e então não há barreiras, e tem de ser assim mesmo!...".
Raskolnikov é realmente uma pessoa de extremos ora sente uma enorme apatia e até repugnãncia pelas pessoas ora revela-se um grande altruísta capaz de dar o seu único dinheiro para ajudar os outros.
Rapidamente conhecemos também Razumikhin um antigo colega da faculdade e um dos seus poucos amigos que ao reencontrar Raskolnikov lhe oferece trabalho na tradução, mas este recusa.
A recusa de trabalho e as suas reflexões sobre a moral após o encontro com Marmeladov poderão ser indicadores de que a razão por qual Raskolnikov ocupa o pensamento com a ideia de um assassínio, não será baseada (ou pelo menos apenas) na sua actual pobreza. Para piorar as coisas recebe uma carta da sua mãe onde lhe revela que a sua irmã irá casar com Pyotr Petrovich Luzhin um advogado que se encontra numa boa situação financeira. Não me estendendo mais, Raskolnikov retira da carta que este casamento não é mais que um sacríficio que a sua irmã está a fazer pela família o que o incomoda profundamente.

(A partir daqui é possível que me tenha entusiasmado a falar desta obra, por isso para quem não quer saber mais sobre a história, não continue a ler).
Penso que não será surpresa, devido ao título da obra, que um crime ocorre e por consequência um castigo. O crime é revelado logo na primeira parte e é a partir daqui que começa o castigo quando Raskolnikov ao contrário do que pensava não aguenta o "peso" do mesmo que o afectam tanto psicológicamente como fisicamente. A mente quando está doente afecta o corpo e Raskolnikov começa a sofrer de febres e delírios preocupando-se obsessivamente com as repercursões do seu crime. As suas obsessões e paranoias não passam despercebidos às pessoas com quem virá a conviver e será apelidado em várias ocasiões como sendo um monomaníaco.
É em conversa com Porfiry Petrovich, o detective encarregue do assassinato de Alyona Ivanovna que descobrimos a teoria de Raskolnikov, uma teoria que consiste em dividir a sociedade em duas classes distintas: os ordinários e os extraordinários. A primeira classe é a mais comum naquela em que a maioria das pessoas se enquadra, são as "abelhas" trabalhadoras que vivem de acordo com as leis e morais, já a classe dos extraordinários que é muito mais reduzida, é constituida por pessoas excepcionais que não necessitam de seguir a lei, sendo-lhes permitido transgredi-la (o que inclui matar) se isso lhes for útil para o cumprimento dos seus objectivos (que no final serão benéficos para a humanidade), pois é esta classe de indíviduos que devem ser os líderes e ditar as regras da outra. Alguns exemplos de indíviduos extraordinários são dadas, mas é na figura de Napoleão que Raskolnikov mais se foca. Ele acreditava pertencer, há semelhança de Napoleão, na classe dos extraordinários e por isso o crime que cometeu, permitido. Efectivamente o facto de não ter conseguido lidar com as consequências do seu acto, levam-no a questionar as suas crenças e a desilusão de ter falhado espelha-se no seu corpo.

Um dos grandes temas que o autor aborda é o do niilismo Russo que naquela altura ganhava notoriedade, ideias ligadas ao utilitarianismo e racionalismo que aqui são fortemente criticados através da teoria de Raskolnikov. Dostoyevsky leva as ideologias destas filosofias, cuja ideia principal é serem altruistas, a uma espécie de "pior cenário possível", uma vez que a rejeição da autoridade (niilismo Russo) ou o facto de os fins justificarem os meios (utilitarianismo) podem criar uma série de situações altamente discutíveis ética e moralmente.
Outro aspecto literário muito interessante é a ligação que existe entre o estado do personagem e o estado da cidade, algo em que Dostoevsky também foi dos primeiros a explorar.

Quando esteve preso na Sibéria o autor tornou-se mais ligado ao cristianismo ortodoxo, experiência que se faz notar em "Crime e Castigo" pois contém vários simbolismos religiosos e onde Raskolnikov poderá através do amor e da fé renascer como um novo homem. Estamos também a falar de uma época em que a religião desempenhava um forte papel na sociedade Russa e independentemente das crenças do autor a forma como está retratada no livro faz-me todo o sentido.

"Crime e Castigo" foi um dos melhores livros que li, a forma como o autor escreve e explora a psique humana, tanto em acções conscientes como nas incoscientes, são excepcionais e tornam este livro numa peça absolutamente imperdível.
Li a edição da "Presença" uma vez que é traduzida directamente do russo, pois aparentemente existem várias edições traduzidas do inglês ou do francês. Claro que se perde sempre algo na tradução, como os nomes de algumas personagens conterem duplos sentidos. Este "jogo de palavras" existe também no título pois crime em russo, prestuplenie, significa uma transgressão, e neste caso o crime de Raskolnikov consiste na transgressão de uma barreira moral.


Fonte

4 comentários:

Flávio Gonçalves disse...

É uma obra-prima.

Anita disse...

Ainda não li mas, está na minha lista de "livros a ler antes de morrer" :)

E como andam as restantes leituras? Eu comecei entretanto a "Tormenta das Espadas" e acho que está a ser o livro mais sombrio até agora :)

Inês Fernandes disse...

Eu já li e adorei, na verdade senti que eu é que tinha cometido o crime e merecia castigo, é emocionalmente esgotante.

Leituras actuais... este ano ando numa de Classicos americanos depois do "A leste do paraiso" john steinbeck, ando a ler o "on the road" jack Kerouac, e está já na calha o "Call of the wild" do Jack London

Loot disse...

Flávio: Sem dúvida.

Anita: eheh este também estava precisamente nessa minha lista :P

Eu estou no "Fúria dos Reis" e estou a adorar.
O Tyrion é o maior, está em grande destaque o que ele está a fazer em Porto Real é muito bom.
Há pouco Jon :(
E isto está aqui está a rebentar os Greyjoy vão-se meter ao barulgo também :D

Além disto ando a ler "Blade of the immortal" (manga).


Inês: Voltaste a ter um blog e não dizias nada tsc tsc.

Crime e Castigo é em tudo um clássico. Quanto a sentires que tinhas cometido o crime, isso só revela a consciência pesada que tu tens, nunca me enganaste lol :P
Mas a sério, tens razão é um livro emocionalmente muito pesado :)

Actualmente como disse acima ando a continuar as Crónicas de Gelo e Fogo, se gostas do género aconselho vivamente é muito bom, já falei dos primeiros livros aqui:
http://alternative-prison.blogspot.com/2010/06/as-cronicas-de-gelo-e-fogo-guerra-dos.html